31/03/2009

Acanho


Não reclame!
Foi você quem desejou a luxúria, o ópio,
o estranhamento e me abriu a porta para o céu
quando eu caminhava junto ao vento
e em direção ao inferno...

Não reclame!
Há diferentes formas de sentir a sua presença
Não necessariamente sob a égide ou tácita influência
de um coração em chamas...

A sua não-eloqüência é cálida e é feitio que me acanha
mesmo eu sendo uma cortesã de raras sedas
e suaves fragrâncias.

Não reclame,
me reclame!...


27/03/2009

Consumo de-composição

(diálogos entre miúdos escritos em tardes distintas)


consumo

com ou sem travessias...
consumimos tudo.
por fim, pomo-nos
mudos.

(26-03-09)


de-composição


Não há mais segredos...
o real-mente necessário fora dito
inalado, sofreio.


Agora restam as paisagens
primaveris nas folhas secas e saídas
de outono.


Os favos de mel no claro
azul da manhã em inevitável
abandono.


E, todo universo de contemplação:
meu no seu, seu no meio...
se de com pon do.

(27-03-09)



* Destaco vias de acesso a dois poemas da Béa, do blog Compulsão Diário, que acrescentam elementos à temática desenvolvida entre os miúdos.


26/03/2009

Aroeira


Era uma maneira
de precipitar a brincadeira.
Os dias travavam lentos e não havia
cobras-cegas em seu pomar
de estrelas.

Talvez,
os elos fossem sinais
de uma lógica sem fronteiras.
Os voos - portais
para uma inócua verticalização
e clareira.

E, o seu coração
sôfrego em comichão:
aroeira...



24/03/2009

Mania de Maria-só-zinha no "Poema Dia"

Imagem: Eu e minha boneca


Eu ainda brinco de boneca
e a minha boneca chama-se Maria.
Durante o dia, dentro de um armário,
eu guardo, com cuidado, a minha bonequinha.
Depois cuido para que ninguém perturbe
nem que alguém machuque
a minha doce Maria-só-zinha...



* Para continuar a leitura dirija-se ao Poema Dia.
**Do livro Agá-Efe: entre ruínas & quimeras
(FERNANDES, Hercília, 2006, p. 95-96).


23/03/2009

Paiol


E o que eu faço com essa vontade
urgente de me jogar, inteira,
aos favos do Sol?

Com essa saudade ascendente
de flutuar, centelha, no claro
azul do arrebol?

Falas de fogueira,
de pães-de-ló?!...


Eu sou a última e a primeira
a flor de macieira lavrada
em teu paiol.


22/03/2009

Colheita

Borboleta Azul

Ao meu redor
segue uma procissão
de borboletas.


Eu queria colher
tão somente uma...
uma que me dissesse
tudo e mais um pouco:

vem...



21/03/2009

Preferências

(diálogo entre miúdos escritos em dias distintos)


Saudável

A palavra era fugidia
demasiadamente vaga,
embora tardia

Não era o que a minh'alma
sonhadora sol_via
nem o corpo imperfeito,
debalde, pretendia

Era uma palavra sadia
sem sinais de cansaço
combate
nem esquizofrenia

(21/03/09)

Equívoco
prefiro o silêncio
a palavras ambíguas...
negros apontamentos
a reticências de punhos
de cromos / de tombos
de línguas...

(15/03/09)

18/03/2009

Bálsamos

Arte: Gustav Klimt


As letras colorem as folhas
em tons de um verde-escarlate:
púrpuras,
fúcsias, azul-lilases
folhas nascidas em flor de macieira
que, tão longe, bálsamos
me trazes...



15/03/2009

Saltos e anéis


Passei os dias
sem consultar astros e anais
sem rever afáveis linhas
sem colar e degolar figurinhas
sem usar saltos e anéis.


Passei os dias
sem admirar postais
sem chover caleidoscópios
sem mentir que nem Pinóquio
sem lavar mãos e pés.


Passei os dias
alimentando pausas
nas entrelinhas: hi ber nan do...

(Hercília Fernandes, in: HF diante do espelho)


***


passei os dias
com saudade
de sua poesia


passei os dias
com cheiro de barro
com terra entre as unhas
sem nenhuma grandiloqüência
sem nenhum excesso


passei os dias
entre sorrisos mútuos
a experimentar os lábios
nas palavras iorubas


passei as noites
a contar estrelinhas
a descobrir reticências
a destituir pontos finais


passei aqui
para me saciar
neste salto
em que anelo
o meu olhar


14/03/2009

Hibernação


É inverno.
A chuva cai servil sem trégua
enquanto meu peito solitário hiberna
o gosto estatutário das ruínas,
das quimeras...

(Hercilia Fernandes, in: HF diante do espelho)


***

hibernas?
a placidez de um
o coração como cisterna


se hibernas
cabeça, tronco,
braços e pernas
hoje não te levam
para fora da caverna...


Arte disponível no Google Imagens.

08/03/2009

Renunciação


Vislumbro dois navios:
um navio sobre um oceano sem direção
um navio sob águas turvas e profundas
onde, acima, levitam plumas
em agitação.

Vislumbro, debalde, a âncora
o porto, o cais... e abraço
a renunciação.


Imagem disponível no Google Imagens.


06/03/2009

Arranjo


Meu eu feminino
é concha entreaberta.

Ninho de possibilidades
onde se interpõem lépidas
promessas.

Meu eu feminino
transpõe animus...

tem pressa!


Arte: Autoria desconhecida (Google Imagens).

04/03/2009

Caminho indireto




Talvez eu devesse ter um romance
tomar banho de sol quando
tudo é inverno.

Talvez eu devesse te levar a sério
sair da rotina, romper o pacto
com o tédio.

Talvez eu devesse aproveitar o dia
e acolher a sofia de uma nova
cor e idéia.

Talvez eu devesse ser lua adversa
ser mais ato e muito menos
conversa.

Talvez eu devesse ser manifesta
e [te] mostrar de uma só vez:

o caminho que vai, indireto,
das Índias às minhas cobertas!...




Nota:

O poeta Fernando Cisco Zappa nos brindou com uma belíssima declamação do poema Caminho Indireto. Para ouvir o texto, clique no play da caixa de áudio DivShare.

02/03/2009

Luto


Nada há para dizer-lhes...
Talvez, a constatação de que as minhas asas
foram podadas, estraçalhadas durante o voo,
o desvio, o refluxo...
A minha melhor porção encontra-se enferma
por isso me ponho negra, jovem viúva
em fria mesa.



Cavalo alado


Fiquei triste!
De repente todo manto azul do céu
desabou sobre mim.
Ao tocar minha pele, aquele azul-celeste,
claro feito neve, coloriu-me de carmim.

Claro! Eu não dei por mim.
Precisava mais de poesia:
escura, difusa, tardia
faria luz
à minha nostalgia.

Claro! Eu desejei o cetim.
Com todos os seus festins.
Eu precisava demais de folia
para emoldurar a minha melancolia.

Claro! Tudo foi só um sonho
Um engano desenganado:
claro - como é o orvalho,
escuro - como é o pecado.

Claro... O sonho se foi num cavalo alado!



Do livro Retrato de Helena.
(FERNANDES, Hercília, 2005, p. 47).

"O sonhador, em seu devaneio, não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo."

(Gaston Bachelard)