26/01/2007

Metros de chuva

arte: Boris, 1997.


Não posso dizer se a chuva passou

nem se lágrimas deixaram de brotar

em minha face então fria.


Nem se tempestades cessaram

seus cantos brios

nas noites cinza de ventania.


Não posso dizer se esqueci

tampouco se lembrarei.

Não posso dizer se sofri

porquanto se o amei.


Quisera ter a bússola do tempo

ou um paiol do teu alimento.

Quisera ter o discernimento

pra sustentar o meu riso

e o teu lamento.


Mas se chegaste ao meu domínio

trataria de recusar:

De que me vale tal envaidecimento

se meu barco segue sempre a vagar?...


Mas se fosse pro teu encantamento

eu rezaria até formar:

Uma tempestade de firmamento

com metros de chuva

à luz do meu riso e teu luar.



14/01/2007

No divã do Jô


Esses dias, não recordo exatamente quando, tive um sonho bastante hilário e ambicioso. Ao dormir, altas horas da madrugada, vislumbrei-me em um divã, cujo psicanalista se constituía a imagem transfigurada do Dr. Freud, o Jô Soares.

Imagine o leitor: o Jô Soares!

Digo que o sonho fora espirituoso, não por conter situações cômicas, trágicas ou patológicas – pois, de fato, sequer lembro as passagens... Mas, porque desde o ocorrido, trago o desejo atrevido de me sentar numa certa cadeira..., que a chamo, afetuosamente, de divã, e deixar-me embalar, aos apelos dos olhos e dos ouvidos, ao som inebriante do Sexteto, as peripécias do Jô analista e aos olhares atenciosos da platéia – nem mesmo o Alex escapa de tais devaneios...

Como sonhar não é pecado e, talvez, um dos únicos direitos assegurados de um ser, possuidor de talento especial ou não, passei a imaginar tal situação. Tentarei narrar, aqui, as loucuras que fomentam minha fronte desde então.

Bem... acredito que todos, de alguma forma, sonham em um dia experimentar aos sabores do Jô: artistas, intelectuais, profissionais liberais, cientistas normais ou anormais... Enfim, toda uma gama de ismos almeja um dia, ou, melhor, noite, ter a oportunidade de passar pela lente e/ou pente do Dr. Jô Soares, e expor os pensamentos, convicções, sentimentos...

No meu caso, várias questões me tomam a mente: O que teria a dizer em seu programa? Falaria o quê, para quê e para quem? Ou, melhor, qual das minhas personas deveria mostrar-se no enleio? A poeta, a professora-pedagoga, a pesquisadora?

Assisto ao seu programa de entrevista desde a época do “Jô Onze e Meia”, e percebo que os entrevistados debatem sobre diversas situações, porém, sempre as voltas de um tema específico que se entrecruza com outras realidades. Desse modo, qual especificidade poderia, eu, tratar em seu divã?

Antes, quero deixar claro ao leitor que minha intenção, aqui, não é fazer uma suposta promoção, nem também fazer deste maluco relato, motivo de espanto ou indignação - apesar de que, se o leitor assim o quiser, poderá rir do calor de minha exposição. Como falei anteriormente mesmo os dementes têm direito aos sonhos. E, quanto a mim, nos sonhos posso tudo! Inclusive ter o Jô Soares como psicanalista freudiano!

Mas, para não perder de vista o ânimo nem a entrevista, voltemos à narrativa!...

Bem, depois de muito refletir sobre a minha suposta especificidade, pensei o seguinte: Falaria, ao Jô, sobre “lirismo”. De como o lirismo age na minha vida pessoal, literária, profissional. O lirismo, basicamente, se constitui o ponto “G” da minha questão, o elo comum a tantas polivalências, e forma, em mim, uma sincronia e unicidade.

Todavia, surge propriamente a indagação: A quem interessaria tal enunciação? Penso que aos artesãos da alma; aos que ainda sentem, dentro, vibrar um coração. Porque lirismo é o avesso do tédio, da coisificação, da pasmaria, da redundância... Lirismo é reticência, é insubordinação.

Nesse caso, tal ilustração seria lustre aos que desejam uma mudança essencial na educação, como quisera Cecília Meireles (1901-1964) ao pronunciar uma “Lírica Pedagógica” às crianças, cuja obra poética infantil une, simultaneamente, natureza lúdica e pragmatismo.

Sendo o lirismo o motivo da consulta no Jô, contar-lhe-ia o meu envolvimento com a poesia, desde a formação da parceria com o músico e compositor Marcus Vinícius até esses dias. Recitar-lhe-ia versos em alta dosagem de expressividade. Falar-lhe-ia dos meus livros lançados sem editora, entretanto, com apoio cultural do SESC-RN. Falar-lhe-ia dos estudos oferecidos aos educadores da rede pública de ensino sobre poesia e imaginário infantil, e a relevância dessa linguagem e do desenvolver dessa faculdade às crianças e às práticas pedagógicas.

Contar-lhe-ia sobre a minha pesquisa: O Lirismo Pedagógico em Cecília Meireles, no Mestrado em Educação (PPGED-UFRN/Natal), que conta com a preciosa orientação do Prof. Dr. Antônio Basílio N. T. de Menezes. E, sobre o meu abraço à causa nobre da poeta-pedagoga: a de levar à educação e à ciência pedagógica:


"[...] um sopro sentimental, que a aproxime da vida quando apenas começa; desse lirismo que os homens, com o correr do tempo, ou perdem, ou escondem, cautelosos e envergonhados, como se o nosso destino não fosse o sermos humanos, mas práticos" (MEIRELES, 1984, p. 30)[1].


[Mais...]

Como considero a cadeira do Jô um divã, falar-lhe-ia também da minha timidez – acho que resultante do excesso de lirismo... Todavia, brincar-lhe-ia: Sou tímida, porém falante! Entretanto, depois de pedir-lhe licença, solicitaria ao maestro Osmar uma música envolvente - quem sabe lírica?... - a fim de afastar o nervoso da estréia. E, ao Alex, um daqueles exuberantes coquetéis de fruta.

Ao Jô Soares, por fim, agradeceria a oportunidade e contar-lhe-ia, passo a passo, esse devaneio; que, aliás, de hilário só o vislumbre da cadeira do Jô como peça idílica do consultório do Dr. Freud!

E você, leitor, já se imaginou em tal situação? Pense nisso...


Nota:


[1] MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3. ed. São Paulo: Summus, 1984.


Indicações de leitura:


A Lírica pedagógica de Cecília Meireles em 'Ou isto ou aquilo' (1964): instrução e divertimento. Artigo publicado em www.artigos.com/ Disponível em: http://www.artigos.com/artigos/humanas/educacao/a-lirica-pedagogica-de-cecilia-meireles-em-%93ou-isto-ou-aquilo%94-%281964%29:-instrucao-e-divertimento-2056/artigo/


O Lirismo Pedagógico em Cecília Meireles: “Quem fica no chão não sobe nos ares”. Disponível em: http://www.artigos.com/artigos/humanas/educacao/o-lirismo-pedagogico-em-cecilia-meireles:-%93quem-fica-no-chao-nao-sobe-nos-ares%94...-2821/artigo/


13/01/2007

Vento epistolar
















Foi-se o vento
Foi-se a alegoria
Foi-se o fragmento
Foi-se a pasmaria.

Foi-se o mar
A tempestade e seus vendavais
Foi-se o luar
A maré cheia e os óculos assaz.

Fez-se o adeus
(Sem medo, sem coragem)
Fez-se como Prometeu
À rocha da humanidade.

Foi-se, fez-se...

com água, a fronte
com fogo, o olhar
com terra, o lume:
O vento epistolar.

(Foi-se, fez-se...)



05/01/2007

Festa de uma nota só


O céu está azul
Tão azulzinho que sorri.
O céu parece florido...
Com rosas vermelhas no jardim.

O céu sorri
E borboletas cantam uma canção
Pássaros pousam alegres
Nas cores vibrantes do cordão:



La-ri-la-lô
entoa a borboleta em louvor.
La-ri-lo-lá
e o beija-flor, a rosa, no pomar.
Li-ri-la-la-lá
pássaro verde, arco-íris no mar.
Li-ri-lo-lo-lô
céu azul, jardim coberto de flor.

O céu está azul
Tão azulzinho que dá até dó...
De quem perdeu a festa
(Que festa?)
A festa de uma nota só!


04/01/2007

Marmelada


Há certos dias... em que tudo parece estar fora de lugar. Você olha em volta não enxerga nada, põe defeito em tudo (e em todos) e depois descobre que é você quem está fora de cenário.

Aí, você se pergunta: O que está acontecendo comigo? Por que esse desânimo, essa febre, essa dor a me sufocar o peito e a alma?

Então, sem muitas delongas e mais mais, você se dá conta de que é em vão tentar realizar algo. Não adianta ler, posto que nem mesmo as figurinhas dos autores irão lhe absorver. Não adianta fazer faxina na casa, visto que a vassoura, as flanelas, a bacia e a empregada já estão de mãos atadas, devido as suas mãos já tão calejadas. Não adianta ligar a TV, porque nem mesmo a novela irá lhe entreter. Não adianta também chorar, visto que suas lágrimas, de tão derramadas, já afundaram navios no mar e, até, aviões na praia.

Porém, em meio a toda essa confusão, você resiste e tenta, em vão, sair do ócio, da contramão. Tem a feliz idéia de ir para o fogão - quem sabe fazer alguma coisa gostosa, como aquela velha receita da vovó de torta - Mas é inútil! Posto que a massa - que grande palhaçada! - você não soube sequer dar o ponto. Quando a tira do forno percebe a marmelada, e se espanta com a sua cara nojenta de gosma destemperada.

Então, quando você já está a ponto de um curto-circuito, vê uma luz no fim do túnel e corre aos braços daquele fiel amigo. Ele todo atencioso, cheiroso, macio... lhe olha com aquela feição de ternura e pacificidade, e lhe diz:

- Encosta-se no meu ombro, doçura, hoje só lhe resta dormir!

02/01/2007

Peso e Medida

De repente...
Não mais que de repente...

(...) E só ficaram as vestes noturnas da saudade
E pousaram, sobre mim, as escuras asas da sobriedade.

Porque o verde virou cinza
(tenho visto, não há cor pior!)
E o azul glicerina
(tenho dito: a imagem deformou-se de tanta dó).

O olhar sereno, meigo, inocente
perdeu a cor, o ritmo, o tom
Dando lugar à dúvida, à luxúria...
Ao peso e a medida da razão.

E o olhar entristecido,
embevecido, no trajeto e no passo vazio,
rio estarrecido das cores cinzas do frio coração.

Assim, haja vista!

"O sonhador, em seu devaneio, não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo."

(Gaston Bachelard)