13/10/2007

Flor de cimento


— Coitada dela! Falava-lhe a voz da in-consciência.

Ela sentia-se vazia: sem cor, sem parede, sem teto e sem chão.
Faltava-lhe o ar comprimido... élan vital. Faltavam-lhe o pôr-do-sol, a primavera e a voracidade matinal. Faltavam-lhe o néctar da tarde e o solo frugal. Todas essas coisas in-sensatas que adoçam o peito de saudade...

— Coitada dela! Coitada dela!... O canto tenebroso da insistência insistia-lhe aos ouvidos.

Faltava-lhe o sexto sentido: o bruma da paixão, o pêndulo do esquecimento. Vale de larvas e flocos de prata se desdobrando em flor de cimento.

— Coitada dela, coitada dela...

Exposição fria, cruel, nua. Paisagem viva-morta n’alguma in-existente aquarela...

— Coitada dela!


09/10/2007

Normal-mente



É normal que eu tenha sonhos
que eu queira voar sem asa delta
que eu me despedace por amor
e mantenha portas sempre abertas.

É normal que eu faça juras secretas
que eu me esforce por ganhar
que eu vença o medo de perder
que eu cante:
madrugada até o entardecer!

É normal que eu chore:
des-con-so-la-da-mente

que eu ria
com-pul-si-va-mente

que eu grite
in-tem-pes-ti-va-mente

que eu ame
tão dul-cís-si-ma (mente)

É normal,
tão nor-mal-mente...

07/10/2007

Um poema oportuno



Você condenou os meus versos (a)
Chamou minha rima de pobre (b)
E a metáfora de sem nexo. (a)

Você me sugeriu velhos moldes (b)
Rimas cruzadas, encadeadas (c)
Em decassílabos nobres. (b)

Você me indicou a poesia ilustrada (c)
Achou meus poemas difusos, confusos (d)
E a minha poética vanguarda. (c)

Você me aconselhou um poema oportuno (d)
Como posso? Sou apenas um vagabundo (d)
Que pesca versos a nadar no novo mundo. (d)



FERNANDES, Hercília. In: Retrato de Helena, 2005. Ilustração: Custódio Jacinto.
"O sonhador, em seu devaneio, não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo."

(Gaston Bachelard)