26/05/2008

Cem motivos



I

Minha boca se perdeu da tua
no momento da fusão.
Não era para causar furor ou dúvida
mas gerir a ebulição.


II

Tal foi o meu espanto
fora a tua indignação.
Não se sabia se branca ou escura
a causa da indisposição.


III

E ali ficamos sem notícias
e a mercê do jogo de adivinhação.
Com pouco apareceu a polícia
a prova final da humilhação.


IV

O soldado da milícia
pôs maior fogo na confusão.
Ousando fazer malícia
da quizila e da má reputação.


V

Como toda farta fadiga
tem fim também a narração.
E essa durou deveras deriva
por cem motivos de opinião.


VI

Eu - a pobre heroína,
não quis ficar na contramão
Fui-me com o soldado da milícia
para não perder a ocasião.


VII

Tu - o moço descontente,
compensaste a solidão.
Dedicando-te à Virgem Santíssima
teu novo amor, guia e proteção.


VIII

Assim se deu o nosso caso:
Cem motivos de espanto e aversão.
Tu vestiste a farda bata abatida
Eu, a laranja-lima da região.


IX

E como preza a boa cantiga
foste, tu, o benfeitor da união...
Deste a bênção Divina
ao casal motivo de expiação.


X

Agora só nas horas altíssimas
trocamos os credos de devoção...
Eu confesso-te as asas partidas
Tu alivias a dor da desilusão:



- Cem Salve Rainha, Cem Padre Nosso, Cem Ave Maria...
Aleluia, Senhor, Amém!...


23/05/2008

Nuvem-muda



Não há que ser dito:
nem novo, nem tédio, nem demolido...

- Oxímoro!...
Para que quereres-me tu?

Zombar-me?
Tatear-me?

Cadê tuas pautas áureas e pausas repetidas?

- Cala-te a boca! Oh, língua!

Deixai-me descansar entre os pleonasmos...
Ácaros da eloqüência e suntuosos espasmos.

Deixai-me à graça, nuvem-muda, dos Nefelibatos!



Arte: Claude Monet



18/05/2008

Quatro ventos




O Oceano conspira-me a favor
banha-me com águas brandas e escuras
abraça-me fina estampa em flor
deixa-me névoa, rosada, falácia muda...



O Oceano fala-me!...
Sopra-me quatro ventos de agouras:
areias, réstias, plumas, alcovas...
Boas e más venturas.



O Oceano é um vale indescritível
lugar antevisto - jamais ponderável!
É alma, irmã, mãe do impossível crível
Ser plásmico no lastro do infinitivo.



O Oceano...
afaga-me os sentidos!




Arte: Irene Sheri.

12/05/2008

Simulacro




Sinto-me inteiramente tua
(como poderia não sentir!?)


Sinto a lasciva que fulguras
Simulacro frágil de esculpir.


Sinto ensandecer-me: palavra tua!
Imensidão dèjá vu.


Sinto-me à tinta-mão fartura:

tinteiro
negro
cheio
cheiro

rosa, framboesa, carmim


jamais vu!...







07/05/2008

Adorno




Que te fizeste para ouvir-me?
Que te fizeste para lavar-me o choro?
Que te fizeste, estranho amor, ao adorno?


Não sou a lua que envolve os teus ardores
Não sou a dor que fazes questão de colorir
Não sou pureza, nem música aos ouvidos de Pã
Não sou mineral, ouro, nenhum talismã...



Sou silêncio
Segredo inconfesso
Material inoxidável
Nuvem abrindo clarão em vale deformável.


Sou anterior e derradeira
Numas – rocha, pavio, inalienável;
Noutras – póstuma, servil e condoreira.


Sou àquela
(mentira, sutil, verdadeira)
que te fizeste adornar-me!...



01/05/2008

Retalhos no porão


Esperemos, pois, um novo século!...


Seu nome será memorizado
O canto insano condecorado
enredo estrelado
por violinos e violões eqüidistantes



Esperemos, pois, um novo século!...


Sua dor medida será brava e desmedida
A voz palatina
efervescida pela hábil dançarina de cabaré



Esperemos, pois, um novo século!...


Sua orelha, finalmente, será remendada
a aquarela transfigurada
à moda visionária de um artista rubro



Esperemos, pois, um novo século!...


O funeral corteja a galope
O viajante anteviu a primeira pá
resta-lhe, enfim, costurar:

(gente maldita e famigerada)

- Os velhos retalhos no porão.



Esperemos, pois, um novo século!





"O sonhador, em seu devaneio, não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo."

(Gaston Bachelard)