19/06/2006

Carta ao amigo



Caro amigo[1],
minhas saudações.


Hoje tenho tomado consciência que não tenho, apenas, alguns poucos anos de vida, mas, provavelmente, quatro séculos de existência.
Muitos pensamentos têm-me, insistentemente, afligido o espírito. Alguns passam a noite a rodear-me, envolvendo-me e requerem, de mim, explicações às coisas que talvez estejam além da minha compreensão. A verdade é que tenho buscado nos textos literários, a priori nos poéticos, possíveis esclarecimentos para as minhas angústias.
Tenho refletido muito sobre o homem e o seu ideal de felicidade, porque, assim, poderei compreender a mim mesma e aos valores que, historicamente, têm me acompanhado. Penso que muitas das minhas aflições decorrem dos ideais dos novos homens; exigindo de mim uma certa racionalidade para examinar os meus próprios sentimentos. A bem da verdade, é que tenho buscado esse entendimento a partir da reflexão do pensamento Iluminista que, por sua vez, tivera suas bases filosóficas importadas da Renascença:
– Como posso, meu senhor, confiar-te os mais sinceros sentimentos, sem ultrajar a nossa sã e fecunda relação? Tenho por ti uma admiração quase que divinal, porque não dizer paternal! Entretanto, é verossímil que os meus olhos já não te vêem com o mesmo olhar. A tua imagem, antes tão fria e distante e, terrivelmente, vertical, tem-se modificado, gradativamente, à luz da inteligência humana.
Contudo, meu amigo, em meio a tantos pensamentos, livros e enciclopédias, sinto-me, ainda, extremamente bucólica. Um forte sentimento idílico tem-me contagiado, remetendo-me a um passado distante, cujos homens podiam se deleitar à natureza. A bem da razão, resigno-me a imaginar, no plano da fantasia, o homem em seu estado natural, não corrompido pelos valores da civilidade. E, nesse plano, posso visualizá-lo sem que minha alma se corrompa pela artificialidade da vida mundana.
O fato, meu senhor, é que não pertenço a este tempo, mas posso-me retroceder para que minh’alma se una a tua. No plano da fantasia, tudo posso, tudo me é permitido sonhar. Posso ver-te por entre as nuvens dos meus pensamentos, posso sentir a tua presença, amar-te, adorar-te. Mas a cruel realidade, com todas as suas frívolas engenharias, afasta-nos. A contar pelo tic-tac do relógio que, insistentemente, alerta-nos a hora, pelos rigores dos ofícios, pelas exigências comuns à vida moderna.
É, meu querido, uma gama de valores diplomáticos permeia a nossa cortês relação, restringindo-nos a qualquer possibilidade de realização afetiva. Falta-nos a poesia, falta-nos o olhar sensível, não mascarado pela racionalidade científica, que submete o poeta a refugiar-se aos campos sob a condição de tornar o Real em Belo.
Novamente confesso-te que, embora meu espírito tenha nascido em meados dos “Setecentos”, a esse tempo não pertenço! Caso eu o pertencesse, não me acompanharia, hoje, tal nostalgia. Meus sentimentos se elevariam comovidos com a sensatez das Suas ilustrações poéticas; e o meu espírito não se afligiria mediante a contida emotividade de Suas liras musicais.
Não desejo mais ser a Sua Marília, não quero-me imortalizada por Seus versos, a Sua expressão de afeto tem-me sido dissimulada e oportunista. Hoje, não desejo ser a musa de Seus poemas galantes e perfeitos, pois sei que são vãs, são-lhes refúgios para as Suas copiosas e dignas responsabilidades civis.
Quero-lhe com todos os artifícios e vícios comuns a nossa civilidade; com todas as angustias d’alma. Quero-lhe instintivo, sonoro e difuso; insano, inquieto e reflexivo. Não almejo-lhe ponderado, irremediavelmente, debelado e ilustrado. Todavia, não desejo-lhe animal, rude aos modos, e ausente de significância.
Quero-lhe Senhor dos Seus pastos, entretanto, entregue, intensamente em meus braços.


Carinhosamente,
Helena.



[1] Carta da personagem Helena ao amigo Seminarista. In: Retrato de Helena (FERNANDES, 2005, p. 57-59).
"O sonhador, em seu devaneio, não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo."

(Gaston Bachelard)