12/03/2008

Sobre-viventes



Amor, eu sou bem pior do que você! Pensava ela.

Pois não lhe falo o que se passa, dentro da minha cabeça, quando me provoca um mal. Porque acalento todo um universo existente em meus travesseiros...

Não fique assim, amor, não se sinta culpado! Olhe nos meus olhos e verá o quanto não sou mais angelical. Aliás, nessa história toda, não há culpados, nem inocentes. Somos fiéis sobre-viventes!

Você apronta, eu finjo nada enxergar... Sufoca-me com suas mentiras; eu omito-lhe certas verdades... Você sonha conquistar o mundo, eu dominar a natureza. Você deseja os prazeres de um harém; eu inventar um castelo de sonhos...

Não, meu bem, não somos culpados, nem inocentes! Somos fiéis sobre-viventes.

Você teme não me encontrar, ao seu lado, nas noites em que não houver estrelas para você contar... Por isso vai ignorando as claras palavras sob negras letras, vai depurando o meu cálice cheio de sangue sob morta mesa...

Eu, à maneira feminina, vou escancarando o gemido sob travesseiros molhados; tentando racionalizar a minha forma ignorante de apurar os fatos. Por que a mulher, meu anjo, é um ser moldável. Dizem que as fêmeas têm uma maneira sonhadora de ver. A razão feminina encontra-se no útero, no calor e na umidade de suas entranhas...

Somos fiéis sobre-viventes, amor! Fiéis sobre-viventes!...

Lembra, querido, daquela vez que deixou-me entristecida por estar encantado com àquela estrela de-cadente?... Eu, amor, ficando tão descontente, fui-lhe bem pior; acredite-me, bem pior!...

Porque a mulher, tendo essa forma imediata de pensar, oculta um universo de sonhos em seu leito. E eu, meu bem, sou mulher; tenho o meu pensar nas coisas concretas, custa-me entender as verdades provenientes da abstração...

Não se sinta algoz, amor. Você não é melhor, nem pior do que eu. E não será o último herói nessa cena empobrecida da vida real... Nem o encantador vilão com as suas artimanhas charmosas, nem o salvador pacífico em sua verdade não-profana.

Porque somos fiéis sobre-viventes. E, nesse conto de fadas, não há culpados, nem inocentes.
Somente sobreviventes!...


"O sonhador, em seu devaneio, não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo."

(Gaston Bachelard)