A minha alma partiu-se como um vaso
vazio.
Caiu
pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que
havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha
quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um
capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que
se partia.
Os deuses que há debruçam-se do
parapeito da escada
E fitam os cacos que a criada deles
fez de mim.
Não se zangam com ela.
São tolerantes com ela.
O que eu era um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente
conscientes,
Mas conscientes de si-mesmos, não
conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada
involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada
de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior
lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal?
A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente,
pois não sabem porque ficou ali.
In: Fernando Pessoa. Lisboa: Ática,
1944.