minhas saudações.
Hoje tenho tomado consciência que não tenho,
apenas, alguns poucos anos de vida, mas, provavelmente, quatro séculos de
existência.
Muitos pensamentos têm-me, insistentemente,
afligido o espírito. Alguns passam à noite a rodear-me, envolvendo-me; e
requerem, de mim, explicações às coisas que talvez estejam além da minha
compreensão. A verdade é que tenho buscado nos textos literários, a priori nos
poéticos, possíveis esclarecimentos para as minhas angústias.
Tenho refletido muito sobre o homem e o seu
ideal de felicidade, porque, assim, poderei compreender a mim mesma e aos
valores que, historicamente, têm me acompanhado. Penso que muitas das minhas
aflições decorrem dos ideais dos novos homens; exigindo de mim uma certa
racionalidade para examinar os meus próprios sentimentos. A bem da verdade, é
que tenho buscado esse entendimento a partir da reflexão do pensamento
Iluminista que, por sua vez, tivera suas bases filosóficas importadas da
Renascença:
– Como posso, meu senhor, confiar-te os mais
sinceros sentimentos, sem ultrajar a nossa sã e fecunda relação? Tenho por ti
uma admiração quase que divinal, porque não dizer paternal! Entretanto, é
verossímil que os meus olhos já não te vêem com o mesmo olhar. A tua imagem,
antes tão fria e distante e, terrivelmente, vertical, tem-se modificado,
gradativamente, à luz da inteligência humana.
Contudo, meu amigo, em meio a tantos
pensamentos, livros e enciclopédias, sinto-me, ainda, extremamente bucólica. Um
forte sentimento idílico tem-me contagiado, remetendo-me a um passado distante,
cujos homens podiam se deleitar à natureza. A bem da razão, resigno-me a
imaginar, no plano da fantasia, o homem em seu estado natural, não corrompido
pelos valores da civilidade. E, nesse plano, posso visualizá-lo sem que minha
alma se corrompa pela artificialidade da vida mundana.
O fato, meu senhor, é que não pertenço a este
tempo, mas posso-me retroceder para que minh’alma se una a tua. No plano da
fantasia, tudo posso, tudo me é permitido sonhar. Posso ver-te por entre as
nuvens dos meus pensamentos, posso sentir a tua presença, amar-te, adorar-te.
Mas a cruel realidade, com todas as suas frívolas engenharias, afasta-nos. A
contar pelo tic-tac do relógio que, insistentemente, alerta-nos a hora, pelos
rigores dos ofícios, pelas exigências comuns à vida moderna.
É, meu querido, uma gama de valores
diplomáticos permeia a nossa cortês relação, restringindo-nos a qualquer
possibilidade de realização afetiva. Falta-nos a poesia, falta-nos o olhar
sensível, não mascarado pela racionalidade científica, que submete o poeta a
refugiar-se aos campos sob a condição de tornar o Real em Belo.
Novamente confesso-te que, embora meu espírito
tenha nascido em meados dos “Setecentos”, a esse tempo não pertenço! Caso eu o
pertencesse, não me acompanharia, hoje, tal nostalgia. Meus sentimentos se
elevariam comovidos com a sensatez das Suas ilustrações poéticas; e o meu
espírito não se afligiria mediante a contida emotividade de Suas liras
musicais.
Não desejo mais ser a Sua Marília, não
quero-me imortalizada por Seus versos, a Sua expressão de afeto tem-me sido
dissimulada e oportunista. Hoje, não desejo ser a musa de Seus poemas galantes
e perfeitos, pois sei que são vãs, são-lhes refúgios para as Suas copiosas e
dignas responsabilidades civis.
Quero-lhe com todos os artifícios e vícios
comuns a nossa civilidade; com todas as angustias d’alma. Quero-lhe instintivo,
sonoro e difuso; insano, inquieto e reflexivo. Não almejo-lhe ponderado,
irremediavelmente, debelado e ilustrado. Todavia, não desejo-lhe animal, rude
aos modos, e ausente de significância.
Quero-lhe Senhor dos Seus pastos, entretanto,
entregue, intensamente em meus braços.
Carinhosamente,
Helena.
*Carta da personagem Helena ao amigo Seminarista. In: Retrato de Helena, 2005, p. 57-59.