27/02/2008

Mania de Maria-só-zinha



Eu ainda brinco de boneca
E a minha boneca chama-se Maria.
Durante o dia, dentro de um armário;
Eu guardo, com cuidado, a minha bonequinha.
Depois cuido para que ninguém perturbe;
Nem que alguém machuque
A minha doce Maria-só-zinha.


Porque a Maria é feita de delicados panos
Cada qual com metros de bordados
e coloridos mantos.
Porque a Maria é curiosa, é formosa,
mas ainda é muito pequena.
Por isso, pode desmanchar suas tranças
e perder-se nas rendas;
Ou nas areias turvas e claras e sardentas.


Mais eu ainda brinco de boneca
Só para pentear alvos e enormes cabelos.
Fazer-lhe roupas,
inventar-lhe nomes, namorados e segredos.
Depois desmanchar tudo, sem, contudo;
Destruir-lhe os sonhos, parafraseados e adereços.


Porque eu ainda brinco de boneca
E construo casas bem azulzinhas
Para que a minha Maria-só-zinha não se sinta sozinha
E possa fazer gostosuras em sua farta cozinha.


Isso tudo porque eu brinco de boneca
E a minha boneca chama-se Maria.
É Maria que pinta em tonta-tinta as minhas curvas-linhas
É Maria que liga ponto a ponto a ponte da minha varinha.


Porque ainda sou criança e meu natural é imaginar
Porque criança que é criança,
brinca mesmo sem saber jogar.
Porque criança não se preocupa por que sonha,
nem o porquê do sonhar.
Simplesmente sonha porque nasceu para amar.


É por isso que eu digo:
- Eu ainda brinco de boneca!
É essa a minha mania!



FERNANDES, Hercília. In: Agá-Efe: entre ruínas & quimeras (2006).




18/02/2008

Infantilidade



Que força é essa?
Que me traga e me dispersa?

Que vontade é essa?
de correr contra o tempo sem pressa?

Que insensatez é essa?
Palavras frouxas, entrelinhas:
En-cobertas?

Que infantilidade é essa?
- Perdida!

E, perdidamente,
achada
nas métricas!...

17/02/2008

Amor em desalinho

Ela ouvia sininhos
E sentia a fragrância das rosas.
Pássaros voavam juntinhos
Entre aquelas cores tão formosas.

Ela exalava alegria
Apaixonada à bela paisagem.
Mas temia perder o brio
Por tamanha a ansiedade.


Isso lhe causava calafrios
Tanto quanto o não-sonhar!

Isso faria seus dias tão sozinhos
Sem aquarela para pintar.


Isso a choveria mancinho
Sem a cor do céu, sem o azul do mar.


Isso é amor em desalinho

E só ela poderia amar!...

16/02/2008

Consolo


Ela, por ele, choraria
caso pudesse enxugar as suas lágrimas.

Brandamente lhe abraçaria
para que sentisse quanto a dor pode ser temporária.

Lhe diria palavras de ternura,
mesmo que ele não visse o Sol reclamando novo dia.

Falaria coisas engraçadas,
só para vê-lo sorrir das suas anedotas sem graça.

[...]

Ela olharia fundo em seus olhos
e lhe daria, apenas, o coração!...



15/02/2008

Sem palavras...


Se pudesse
lhe daria um beijo:
daqueles!
Para o mundo ouvir,
saber.


Se pudesse
diria em poucos versos
essa coisa imensa
que me fala
sem palavra dizer.


Se pudesse
não diria nada
falaria apenas
colada
à sua língua:

- Psiu!
Si-lên-cio!...



14/02/2008

Intertextualidade profana

1 E pensar que...
2 já ouvi
3 vozes, velozes,
4 veladas
5 no silêncio.


6 Enfileirei
7 cabelos em tranças
8 frascos azuis
9 em vãos pensamentos.


10 Sufoquei
11 o verde na mata
12 o mar mofo-morto,
13 ainda morno,
14 em firmamento.


15 Rezei
16 verdades mentidas
17 auroras perdidas
18 em flores de cimento.


19 Enterrei
20 a dor sangrenta
21 na carne morena
22 em vales opulentos.


23 Renasci
24 na morte em vida
25 na chegada partida
26 em desfilamento.


27 E pensar que...
28 fiel cumpri,
29 ver-sa-tirizando,
30 os dez mandamentos!






Arte de Paolo Caliari. Disponível em: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/Veronese.html


09/02/2008

Interpelação



"Meu ser evaporou na luta insana"...

Interpelação
profana,
grito e desengano de guerra.




Quem me dera...
a sofia e/ou poeta?
Quem me desperta...
à paz sem reza?

"Meu ser evaporei na luta insana"...

Ah..., cruel promessa!
Comédia humana
fugidia e indigesta!



Arte de Marc Chagall


06/02/2008

Insensatez


Havia uma diferença enorme entre eles, mas isso não era o problema maior. Talvez isso até contribuísse para que eles sentissem tamanho amor.

Ela era um pouco dada à distração: sonhadora! Dedicava-se à arte, música, literatura. Apreciava os poetas simbolistas...

Ele era pragmático, metódico, civilizado... Tão racional e categórico que não olhava, ao céu, senão para contar estrelas!

Mas eles se complementavam.

Havia amor entre eles.

E eles se contemplavam como querendo enxergar o eu no outro.


♥♥♥


Há muitas formas de amar. Uma delas se realiza pelo olhar.

No princípio, eles não precisavam de satisfações carnais: beijos, abraços, carícias sensuais... Bastavam-lhes a urgência e a intensidade do olhar.

Mas, os dias foram passando e a cobiça da paixão fora lhes dominando. O anseio fizera com que eles passassem a se estranhar. O que antes consistia pura contemplação fora se transformando, gradativamente, em possessão:

Ela o queria. Ele a ambicionava – um só sentimento em maneiras distintas.


♥♥♥


Porém, toda vez que estavam prestes a se entregarem à insensatez, algo lhes acontecia.

Certo dia, ela embevecida - por tantas letras, canções e asas partidas - lhe escrevera a fim de fazer-lhe ir ao seu encontro.

Ele recebera a escrita tão entusiasmado que até perdera, no percurso, o salto; só para a Lua poder alcançar. Mas, quando ela recebera a resposta já não se encontrava ao seu livre alcance... E não havia mais como retroceder, não havia como de seu Planeta descer!...

O fato é que ela passou muitas luas envolvida àquela mensagem: sonhando, sonhando, sonhando... Ali, enfim, ela tivera certeza da reciprocidade do amor. Entretanto, jamais ela pudera lhe falar sobre a sua impossibilidade de vôo...


♥♥♥


Ele, decepcionado, acreditou que tudo não passava de uma vã brincadeira; jogo de criança mimada.

Ela, ansiosa, fora vendo seu amor se desfazer e, na sua loucura, perdera o equilíbrio e o domínio das ações...

Então, ele deixara de buscar o seu olhar, pois duvidava, duvidava, duvidava...

Ela ainda quis fazer-lhe reconsiderar, mas era tarde demais.


♥♥♥


Como demente ela passou a se comportar, tentando-o ao ciúme. Não que ela aspirasse qualquer outra experiência. Ela só almejava ter de volta o seu amor e o forte sentimento de amizade que, outrora, os uniam. Mas foi aí que ele passou, cada vez mais, a duvidar, duvidar, duvidar...

Ele ficou mudo. Ela entristeceu.


♥♥♥


Não há Natal, Ano Novo ou data de aniversário que ela não o recorde. Durante anos fizera questão de lhe enviar expressões de afeto. Contudo, seu silêncio grita tanto em seus ouvidos que ela também passou a desconfiar, desconfiar, desconfiar...

Ela ainda o ama - não há dúvidas sobre isso! - já que não há um só dia que, dele, se esqueça, embora já não veja a cor do seu olhar.

Hoje seu coração só guarda saudades. Por isso, ela, também, emudeceu!...



04/02/2008

Cancioneiro de primavera



Era primavera.
Havia pássaros e tinham borboletas.
Um grilo insistia em um monólogo.
Os raios finais da tarde acenavam para o lado noturno da hera: cancioneiro de primavera!
Havia uma menina sentada no banco da praça: a espera!
Havia um olhar distante, distraído em alguma paisagem perdida.
Havia um relógio: sem batidas!
Havia um bêbado no canto: em pranto!
Havia um chinelo azul.
Tinham tamancos cor-de–rosa e uma carta envelhecida de baralho.
Havia parede, teto, assoalho...
Marcas de pés descalços; olhares sem óculos, sem esquadros.
E, lágrimas deslizavam ao longo do corredor oblongo decorado.

"O sonhador, em seu devaneio, não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo."

(Gaston Bachelard)